Precariedade e subordinação – o caso da nova geração de advogados
A expansão da profissionalização no período histórico da financiarização do capitalismo dominado pelo discurso único e por políticas neoliberais, é, ao mesmo tempo, um processo de proletarização de advogados.
Uma análise sociológica do processo e da situação deve questionar-se se e como os profissionais da advocacia se dividem entre aqueles que continuam a prosseguir, mesmo que parcialmente, os ideias profissionais de serviço ao interesse geral e à defesa dos direitos das pessoas, incluindo as com menos posses, e os que desistiram de pensar nisso – por exemplo, estudando as lutas judiciais a respeito de direitos humanos e comparando-as com o envolvimento dos advogados nas questões relacionadas com a construção de mercados e oportunidades de negócio e do impacto dessas actividades na organização da Ordem dos Advogados. Além da análise sincrónica da cristalização da estratificação social dos profissionais, uma análise histórica do modo como o mundo das profissões se foi cruzando, sob o capitalismo, com o mundo do trabalho poderá ajudar a compreender a divisão criada nas profissões pela proletarização de uma parte dos seus membros. Cristalização, a existir, paralela ao reforço pós-moderno observável dos muros sociais entre os que competem e os que sobrevivem, os que são recompensados e os que são penalizados.
Palavras chave

Estratificação profissional

Proletarização

Advogados

\capitalismo

Direitos humanos
Precariedade e subordinação – o caso da nova geração de advogados
Proletarização designa o processo de integração de trabalhadores assalariados no modo de produção capitalista, no século XIX. Os trabalhadores agrícolas foram sendo substituídos por trabalhadores industriais.
No pós-guerra e mais aceleradamente nas sociedades do conhecimento, pós-industriais, com a deslocalização das indústrias para países emergentes, onde o capitalismo conquistou novos mercados, o próprio capitalismo teve a necessidade de criar classes médias, trabalho não produtivo, maneiras de se financiar através de sistemas de distribuição da riqueza e de consumo. Além de penetrar em novos territórios anteriormente colonizados, o capitalismo entrou também em campos de actividade anteriormente com grande autonomia e até maioritariamente críticos do capitalismo, como as artes, a educação ou as profissões intelectuais.
Proletarização no século XXI

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A proletarização do século XIX era acompanhada pela pauperização.

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No século XXI, a proletarização do trabalho intelectual é conseguida por incentivos financeiros aos profissionais que aceitam proletarizar-se, isto é, prescindir da autonomia profissional e tornarem-se parte integrante dos sistemas de administração do capital global.
Evidência do Processo
Uma das evidências da existência desse processo é a cristalização de formas organizativas hierarquizadas entre os profissionais, que é uma forma de instituir a submissão ao capitalismo, em substituição das relações entre pares.
O direito das organizações substitui, assim, o prestígio social, a burocracia substitui a troca de ideias e as lutas ideológicas entre os profissionais.
Do método sociológico
Um dos problemas da especialização do trabalho sociológico é o alheamento cognitivo do lixo social produzido no processo de construção do campo isolado análise. A atenção à urbanização e à industrialização, por exemplo, não tem comparação como a dedicada ao que se passa na agricultura e na extracção de matérias-primas.
A atenção àquilo que surge de novo é acompanhada por um alheamento daquilo que é destruído, no meio ambiente e nas pessoas, tudo confundido com a natureza ou com o inimigo (incluindo doença e/ou crime). Aquilo que é dado e herdado é magicamente tomado como aquilo recebe e recicla o que não interessa considerar.
A nova geração de advogados
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A nova geração, incluindo a de advogados, não está apenas a aprender como receber a herança profissional da qual perspectiva viver.
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Por um lado, está a aprender a sobreviver no mundo, tão atenta quanto lhe é possível aos riscos existentes, incluindo a ideia de ter que mudar de emprego várias vezes ao longo da vida, e, por outro lado, concentrada em pensamentos positivos, de sucesso profissional, individual e corporativo, conforme ensinam as escolas profissionalizantes e a psiquiatria-psicologia.
Atenção e dedicação excessiva

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Essa atenção e dedicação à causa profissional, por vezes excessiva do ponto de vista da saúde, não é típica dos advogados.

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Mostram-no as estatísticas da novel doença do burnout, bem como as muitas histórias de entretenimento e auto-ajuda dedicadas ao assunto (Cury, 2018).

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A explicação deste auto-sacrifício dos melhores tempos da juventude, esta actividade contranatura autodeterminada nos mais novos para a conformidade, passa, certamente, pelo destino exemplarmente negativo dos jovens que não estão em condições de participar na corrida por uma posição de conforto na sociedade moderna.

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Os dois mundos, o do sucesso e o da exclusão sociais, não estão separados. Ao invés, estão intimamente ligados. Mais do que a circulação entre um e outro mundo, o medo de ser excluído e a culpa de estar excluído são partilhados por todos.
Advocacia em Portugal

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No caso da advocacia em Portugal, a luta política e profissional tem oposto com clareza, nos debates eleitorais da Ordem dos Advogados, os interesses das empresas de advogados aos advogados de escritório ou assalariados.

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Tais disputas acompanham um distanciamento dos profissionais das actividades pro bono e da defesa dos direitos humanos. Comparativamente ao passado e a outros países, como Espanha ou Irlanda, a mobilização dos advogados em defesa dos direitos humanos é escassa.

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Em Portugal, ao contrário dos dois países citados, não existem actividades associativas para protecção dos direitos dos presos e a Ordem dos Advogados expressamente, em vez de reclamar dos seus associados actividades pro-bono, não as recomenda.
Proletarização global

A proletarização dos advogados é um fenómeno global, ou não será. Será útil para a libertação dos investidores dos constrangimentos de circulação global de capitais e de actividades económicas que a aliança neoliberal procura continuamente desenvolver com sucesso desde os anos 80.

Conquista as mentes de uma profissão estruturante dos regimes políticos modernos e paga aos melhores para defender os seus interesses imediatos.

Os próprios profissionais empenhados em receber as retribuições disponíveis para quem, dentro da profissão e dentro dos órgãos de soberania do estado, favorece os interesses dos capitalistas, tratam de organizar profissionalmente, nas respectivas profissões, as estruturas hierarquizadas que caracterizam e deram provas nas empresas privadas.
Processos e políticas internas
Estes processos que se aplicam a todas profissões têm, no caso da advocacia e nas profissões jurídicas em geral, um caracter politizado, que se pode observar também, por exemplo, na novel profissão dos economistas, formados em grandes quantidades por cursos universitários que anulam o ensino das teorias económicas e instalam um discurso único económico como se apenas existisse em cima de Terra uma teoria: a neoclássica.
A mais apropriada para a divisão dos profissionais em especializações estanques entre si e, por maioria de razão, estanques com quaisquer outros conhecimentos.
Competências e nichos de mercado
A ideia da haver uma necessidade de um advogado competente saber ler latim e grego ou conhecer trabalhos de ciências sociais para compreender o mundo e enquadrar os casos em que trabalha foi substituída pela procura de um nicho de mercado lucrativo e pouco acessível, sobretudo organizacionalmente protegido num recanto qualquer da hierarquização profissional, portanto, dependente da boa vontade do génio organizador, o patrão de empresa.
Consciência proletarizante
A consciência do beco sem saída proletarizante a que os postos de trabalho jurídicos mais bem pagos conduzem é obscurecida pela ideia de ser por via da competência profissional normalizada e normalizadora que cada um merece ou não auferir os rendimentos, salários e honorários.
Ao mérito organizacionalmente atribuído a uns corresponde a culpa pelo demérito dos que nem sequer foram considerados para fins de proletarização. Isto é, a proletarização, no século XIX como no século XXI, corresponde ao recrutamento de pessoas reduzidas a agentes do capitalismo para sobreviverem. Embora, evidentemente, haja diferenças substanciais entre as alternativas de vida para os camponeses do século XIX e para os licenciados no século XXI.
A advocacia na era da globalização
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As profissões clássicas, como a engenharia, a medicina ou a advocacia, são formas de individualização social e legal do trabalho, à margem do assalariamento. A profissionalização neoliberal caracteriza-se por um forte movimento associativo profissional dos assalariados (Freire, 2003), em busca de prestígio e regulação laboral à margem da concertação social e do sindicalismo.
Sindicatos e empresarialização
Na medicina e na engenharia, mas não na advocacia, surgiram em Portugal sindicatos que complementam a acção das ordens profissionais, na defesa dos interesses dos respectivos associados.
A empresarialização do trabalho das profissões clássicas, por outro lado, que é mais antiga na engenharia, divide os profissionais pelas linhas das lutas de classe: a carreira profissional, autónoma e independente, opõe-se à dependência do assalariado. Mas, ao mesmo tempo, empresarialização e sindicalização ocorrem numa época histórica de moderação dos efeitos sociais das contradições de classe.
Meritocracia e transformação social

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Ao menos imaginariamente, os melhores desempenhos do mérito são reconhecidos e acompanhados pela promoção profissional, financeira, social, eventualmente de classe.

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O alargamento neoliberal da profissionalização foi acompanhado pela generalização da aceitação da ideia de se viver numa sociedade meritocrática.

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Em larga medida, correspondem ao projecto de transformação social das sociedades mais ricas em sociedades do conhecimento, de que a globalização, a deslocalização das indústrias para países em desenvolvimento, são outros aspectos.
Universidades e trabalho despolitizado
Os politécnicos e as universidades perderam a sua ambição original de fazer convergir práticas e conhecimentos recolhidos e desenvolvidos pelos trabalhadores e pelas elites intelectuais, a favor das sociedades.
O igualitarismo foi reconduzido do aspecto legal, de garantia de direitos – leis laborais reconhecendo e compensando a subordinação contratual dos trabalhadores perante os seus empregadores e politicamente os sindicatos – para o aspecto económico, utilitário – igualdade perante os mercados de trabalho, em nome da flexibilidade e adaptação da economia às necessidades.
Globalização e exportação do trabalho inteligente

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Com a globalização, com a sociedade do conhecimento, a exportação de trabalho inteligente para o mundo substituiu, na hierarquia de valores civilizacionais, a exploração, a importação de matérias primas devolvidas sob a forma de produtos manufacturados.

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As grandes empresas multinacionais e os grandes sindicatos de trabalhadores que com elas negociavam o valor do trabalho, segundo as regras keynesianas em vigor nos trinta anos do pós-guerra, foram desmantelados em constelações de firmas financeiramente auto-sustentáveis, com os respectivos colaboradores (Reich, 1991).
A transformação da profissão

Os engenheiros e os professores, que tinham sido as profissões mais volumosas no pós-guerra (Bell, 1973), na era da globalização foram superados por outros analistas simbólicos mais necessários e criativos, libertos do peso da ciência e da realidade: os economistas e os juristas, os engenheiros financeiros, apoiados nos mundos virtuais criados pelas novas tecnologias de informação e comunicação.

A profissão deixou de ser a referência a um espaço de criatividade individual, autoral, moderna, mas em larga medida artesanal. Passou a ser uma referência de maior protecção contra o arbítrio patronal.
Certificação do mérito

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A certificação do mérito, tal como noutras actividades, pode ser mais auto-regulada ou hétero-regulada.

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O aumento de criação de ordens profissionais nas últimas décadas mostra a preferência dos profissionais por uma auto-regulação contratual pública, que no caso dos médicos interfere directamente com a formação inicial nas universidades e no caso dos advogados não o fez.

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A Ordem dos Advogados veio tentar interferir tardiamente nesse campo através da exigência de exame de admissão à carteira profissional. Acção para reduzir a concorrência no mercado. Acção que reforçou o valor da protecção empresarial dos licenciados que se proletarizam, afastando-os mais da profissão clássica.
Ordens profissionais e classes sociais
A organização moderna do trabalho em torno da propriedade, em torno da abolição da posse dos meios de produção pelos próprios trabalhadores, transformou as sociedades de ordens em sociedades de classes.
As diferenças sociais deixaram de ser produzidas judicialmente, por exemplo através das autorizações e proibições de uso de vestuário, e passaram a ser produzidas sobretudo pelo estado financeiro de cada um.
Governança e burocracias

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Aquilo que era governado à vista, por decreto, exposto na sua crueza, passou a ser ponderado com outros meios, na verdade com muitos mais meios, por kafkianas burocracias juridicamente elaboradas, de forma a assegurar uma igualdade formal perante a lei e a criar sistemas de diferenciação de modo a implicar as próprias vítimas da opressão na produção das condições sociais opressoras (Foucault, 1999; Illich, 2018; Marcuse, 1991).

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De uma maneira geral, a liberdade de cada um passou a depender do êxito individual na procura de emprego, transformado em fundamento social da identidade e especialização profissional.
Integração social e dualização

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De outro modo, as pessoas sem emprego ou protecção de quem tenha um emprego, podem, ou até devem tornar-se vítimas legítimas de processos de integração social de ajuda e auto-ajuda, sujeitos à maior ou menor empatia tanto por parte dos funcionários ou voluntários que acompanham essas vítimas, como das próprias vítimas entre si e contra si.

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De um modo esquemático, a institucionalização política das lutas de classe no pósguerra não resultou na homogeneização social das sociedades, mais ricas ou mais pobres. Resultou, em vez disso, na legitimação das dualizações das condições sociais, umas positivas e esperançosas e as outras negativas e presas nas armadilhas da pobreza, em que os trabalhadores úteis, competentes, aceites pelos mercados de trabalho, ascenderam a classe média, atormentados com a perspectiva de viverem uma espiral negativa caso não se adaptam às sempre novas solicitações empresariais.
Profissionais e recrutamento
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Ao mesmo tempo, enquanto o mundo dos profissionais era usado para consolidar as posições dos trabalhadores de classe média, ao menos simbolicamente, os mundos dos profissionais clássicos proletarizava-se. Isto é, transformou-se em campo de recrutamento de empresas que condicionam a autonomia e liberdade profissionais, mediando entre eles e os seus clientes, em grande medida substituindo-se aos clientes, interpretando politicamente as suas necessidades.
Dualidade das classes sociais
A dualidade das classes sociais é um processo e não a descrição de uma realidade. Por um lado, porque os trabalhadores nunca se uniram politicamente, como desejaram os socialistas. Por outro lado, porque entre as classes sociais subordinadas não há capacidade de denunciar, e menos abolir, a produção social e institucional de identidades degradadas (Goffman, 2004) dos lúmpen, falhados, pobres, criminosos, imigrantes, frequentemente imaginados como resultado de etnias estigmatizadas.
A integração política dos movimentos dos trabalhadores no aparelho de estado correspondeu a uma integração social de muitos trabalhadores, mas só de alguns. A dualização social, entre trabalhadores bons e trabalhadores maus, entre pobres bons e pobres maus, entre os que querem trabalhar e os que não querem trabalhar, nunca deixou de polarizar as sociedades modernas. O combate à pobreza, à fome e à miséria, como é sabido, não está limitado por recursos, mas pela estrutura da organização social global. A miséria, de alguns países e de pessoas concretas, tem uma função social: será a função da dívida (Graeber, 2011), a função de produção do medo, da culpa da contaminação social do mal-estar?
Reflexões de Bourdieu, Foucault e outros
Pierre Bourdieu (1979) na cultura, Michel Foucault (1999) na disciplina, Erwin Goffman (2004) na identidade, Norbert Elias (1990) nas emoções, descobriram formas não financeiras e não jurídicas de produção da distinção de classes que são, ao mesmo tempo, constituintes de estratificações sociais que podemos assimilar, ao mesmo tempo, a ordens e a classes.
Sob o capitalismo, além dos mecanismos de mercado, pode encontrar-se a produção social das desigualdades ontológicas entre as pessoas, juridicamente apoiada, na sua promoção e/ou na sua cristalização.
Exclusão e culpa social

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A existência de infraclasses, de excluídos, de underdogs, tem sido criminalizada (Young, 1999). Isso, ao mesmo tempo, reforça e retrai o medo: culpabiliza positivamente as vítimas da miséria (Dores, 2018).

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Esse é um modo de dispersar a atenção política da evidência da falha multisecular do capitalismo cumprir as suas promessas: abolir a miséria e a violência.

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O recurso dos estados à culpa, ao sacrifício e à expiação, às ideologias religiosas tradicionais, faz das prisões, como se costuma dizer, são mundos à parte. São, em parceria com a tabloidização da comunicação social, o assistencialismo, etc., instrumentos de escamoteamento e desresponsabilização dos problemas sociais, por parte das elites. São formas de vincar fronteiras de classe como se fossem fronteiras de ordens, entre os judicialmente livres e os judicialmente tutelados. Distinção entre os criminalmente livres e os criminalmente tutelados, como protótipo da distinção entre os livres no acesso ao uso aos meios de produção e de subsistência e os sem tal acesso. Alegadamente por razões de mérito e demérito.
Continuidade e opressão
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Esta continuidade das ordens sociais e da opressão organizada pelos estados, na era da reprodução das classes sociais pela economia, ilude as próprias ciências sociais. A espuma dos dias, a agitação técnico-financeira dos mercados, a convergência da publicidade e da propaganda (Harari, 2018; Lyon, 2001), a profissionalização da produção de conhecimentos (Coser, 1956: 27), o crescimento económico, toldam a própria percepção das profundas continuidades em curso da opressão e das suas consequências, como a fome e a violência.
Mobilidade Social e Educação
Nomeadamente, custa a acreditar a persistência multisecular dos índices de mobilidade social, que não foram tocados pela modernização (Clark, 2014). Ainda que essa tenha sido a conclusão dos estudos que tornaram famoso Pierre Bourdieu nas ciências da educação (Bourdieu & Passeron, 1964, 1970).
A noção de escola como instrumento moderno de reprodução foi substituída pela ideologia do ascensor social, confirmada de forma tautológica por inquéritos sociológicos sobre a distribuição crescente de certificados escolares.
Proletarização e profissionalização

O aumento do número de profissionais, incluindo os das profissões clássicas, não significa um processo de desproletarização das sociedades do conhecimento.

Significa a a introdução de formas de distinção de classe dentro das profissões e, portanto, os processos de proletarização dos profissionais em conflito com os processos de profissionalização tradicionais, dentro de cada profissão.

Entre os profissionais com acesso aos meios de produção, por serem administradores de empresas profissionais ou outras, e os profissionais sem acesso aos meios de produção, divididos entre os que aspiram a ter acesso aos meios de produção e os que não alimentam tal aspiração. Todos divididos entre os que seguem as orientações profissionais dos primeiros e os que procuram seguir outras orientações profissionais, incluindo tradicionais ou sindicais.
A profissionalização das lutas de classe
A teoria da tendência igualitária que caracterizaria a sociedade moderna foi adoptada pelas lutas dos trabalhadores. Como pela boca morre o peixe, as palavras de ordem das lutas burguesas contra os privilégios aristocráticos, em nome da igualdade, foram usadas para dizer que havia outros grupos sociais, outras classes, à cabeça os trabalhadores produtivos, que também mereciam ser englobados naqueles que ascenderiam ao privilégio da igualdade.
As revoluções que reclamaram liberdades para os negócios, em forte crescimento para acompanhar os processos de afirmação da Europa no mundo, valorizaram o trabalho. Primeiro as competência politécnicas do trabalho, como na Enciclopédia.
Trabalho como símbolo de dignidade
Mais tarde o trabalho como símbolo de dignidade senhorial, quando se incluíram os trabalhadores no direito de serem tratados por senhores. O animo dessa transformação cultural foi e continua a ser tão grande que a burguesia, os trabalhadores intelectuais e de serviços, praticamente toda a gente, incluindo os desempregados, as mulheres e as pessoas que se dedicam às prestações de cuidados, vivem o trabalho como aquilo que há de mais dignificante.
Independentemente da competência politécnica ou especializada, o valor geral do trabalho tornou-se, ao mesmo tempo, uma justificação do trabalho como sacrifício, como tripálio (instrumento de tortura romano constituído por três paus).
Alienação das competências

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Os processos de profissionalização tornaram-se formas de alienar as competências, democratizando-as ao serviço dos investidores, com perda de autonomia fundada na posse dessas competências. O taylorismo, a decomposição das tarefas por unidades simples de acção, usado com largos proveitos na indústria, criou a organização científica do trabalho que expandiu a mesma lógica de expropriação de competências dos profissionais aos sectores de serviços e, mais recentemente, aos sectores mais qualificados do trabalho intelectual.

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A contribuição das novas tecnologias de informação e comunicação assumem um largo papel instrumental nesta expansão da multiplicação das capacidades de mobilização de competências altamente qualificadas (requerindo grandes períodos de formação inicial).
Enciclopedistas e escolas politécnicas
Os enciclopedistas reuniram folhetos sobre como fazer individualmente, e com meios acessíveis a todos, actividades profissionais anteriormente vedadas pelos privilégios das corporações. Foi um primeiro catálogo de bricolage contra a ordem urbana dos mestres das corporações, que usavam a opressão para reservar e planear as respectivas actividades, e dos seus companheiros e aprendizes, em nome das necessidades sociais conhecidas e protegidas pelas cidades.
As escolas politécnicas e o positivismo celebraram e institucionalizaram a separação entre as tecnologias, que deveriam ser livres, e os seus utilizadores, igualmente livres, limitados apenas nas suas relações pelas competências de utilização e a sua eficácia. Ainda hoje entendemos ser um mérito a qualidade profissional de bem utilizar uma tecnologia ao serviço de quem dela possa necessitar, dependendo apenas da capacidade de remunerar o trabalho.
Conclusão
A nova geração de advogados confronta-se com uma situação decorrente da transição da profissão de um lugar mais próximo das funções do estado – de defesa dos direitos das pessoas e de organização da política – para um lugar de mediação entre o estado e os mercados, sobretudo internacionais – de mediação entre o estado e a economia para atrair investimentos. A desprotecção da vida pública e privada revela-se de muitas formas, como nas questões de liberdade de expressão e de reserva da vida privada, tanto de políticos e jornalistas como de trabalhadores e denunciantes de violações dos interesses comuns, nos campos da corrupção ou da violação de direitos humanos. A mobilização da profissão dos advogados faz-se sentir mais na recolha de recompensas financeiras produzidas por interesses manipuladores dos estados, como nos paraísos fiscais, por exemplo, do que reage à desautorização política dos princípios fundamentais do respeito pelo direito (Preto, 2010).
A nova geração de advogados foi produzida no quadro da democratização do ensino superior e do acesso à profissão. A expansão dos recursos disponíveis para pagar serviços de representação legal não acompanhou o ritmo de aumento da produção de licenciaturas e de aspirantes a advogados, enquanto a profissão se feminizava. A internacionalização da profissão, ao responder à globalização e ao avanço das ideologias de gestão do estado como empresas privadas, nomeadamente às práticas de outsourcing, abriu novas oportunidades de profissionalização inacessíveis aos profissionais que mantiveram as rotinas profissionais anteriores, sem empreendedorismo, não empresariais.
O carácter da melhor imagem da profissão, para os novos profissionais, deixou de ser a romântica vontade de integrar as lutas contra as injustiças criadas pela exploração económica (Rawls, 1993) e passou a ser procurar o melhor lugar na hierarquia profissional em cada momento, como se tratasse de uma carreira laboral semelhante às dos trabalhadores enquadrados em contratos colectivos de trabalho. As empresas de advogados são a expressão puramente profissional desse novo paradigma de profissionalização. A defesa dos direitos naturais, dos direitos humanos, deixou de ser uma responsabilidade profissional especial da elite dos advogados e passou a ser um uma responsabilidade de todos os cidadãos, em abstracto, de todas as profissões, mas de ninguém em concreto (Sen, 2004).
As instituições judiciais, como as definidas pelos tribunais superiores, vivem realidades e tempos cada vez mais distanciados das vidas quotidianas que, por sua vez, a ter em conta o aumento do número de processos judiciais, continuam a precisar de recorrer, cada vez mais, aos tribunais. Esse distanciamento é aumentado pelos processos de diferenciação próprios da globalização, destacando os mercados locais e os mercados globais uns dos outros. Uns e outros reclamam do estado, ao mesmo tempo, menos regulação e mais protecção. Impondo aos advogados especializações, tomadas de posição profissionais prévias, ao serviço de quem paga melhor ou pior. Sendo que quem encontra formas de receber os melhores honorários é quem está mais próximo das políticas de troca de liberdades por segurança, de segurança jurídica própria dos estados por risco calculado de tipo empresarial.
O direito constitucional e das relações internacionais, consolidados no último momento histórico crítico, como o fim da Grande Guerra para a institucionalização da ONU e do seu Conselho de Segurança ou a Revolução dos Cravos e a constituição de Abril, em Portugal, são tipicamente a origem da racionalidade legítima de cada estádio de relação de forças sociais. Ao direito estadual opõem-se e subordina-se o direito contratual entre proprietários livres, protegidos pelos estados e servidos pelos recursos, naturais e humanos, extraídos da natureza e das sociedades. Às instituições desenhadas em abstracto, a pensar na Guerra Fria, correspondem, em concreto, organizações que as realizam (ou não) necessariamente de forma parcial, incompleta e enviesada, na era da globalização.
O discurso único, característico do período neoliberal, representa uma chantagem política, bem-sucedida, de troca da subordinação (contenção e repressão correspondente do uso das liberdades) para evitar a precariedade da vida em pobreza e miséria (através da segurança de estar do lado mais forte, do lado da sociedade com acesso à abundância de recursos). A sociedade do capitalismo avançado está tolhida, aturdida, anestesiada, na sua acção colectiva, por esta política de controlo social fundada na armadilha da pobreza. A profissão dos advogados também. A sobrevivência individual na profissão depende da capacidade de cada um escapar à precariedade de acesso aos recursos, através da protecção superior, hierarquicamente organizada, em especial por empresas de advocacia internacionalizadas: através da precarização do acesso às liberdades profissionais e da desvalorização dos combates pelos direitos humanos, tal como eles foram vividos nas décadas imediatamente a seguir ao fim da Guerra.
Bibliografia:
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- Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (1964). Les Héritiers. Paris: éditions de Minuit.
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- Brown, M. (2009). Free entreprise and the economics of slavery. Real-Economics Review.
- Clark, G. (2014). The Son Also Rises. Princeton and Oxford: Princeton University Press.
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- Freire, J. (coord). (2003). As Profissões em Portugal. Oeiras: Celta.
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- Young, J. (1999). The Exclusive Society. London: Sage.
Notas:
As corporações medievais eram organizações urbanas de mestres e aprendizes organizados de forma a viverem em conjunto em torno de artes mais ou menos secretas transmitidas na tarimba e avaliadas em função das relações sociais que eram estabelecidas dentro da corporação e entre a corporação e os mercados locais com os quais ela se relacionava.
O comércio e os Descobrimentos estenderam de tal modo as relações sociais que as organizações corporativas passaram a necessitar de um estado que as protege-se dos conquistadores de cidades e dos riscos criados por vendedores agressivos de produtos vindos de fora, sobretudo do ultramar (Brown, 2009).
Os anglo-saxónicos ainda hoje chamam corporações às empresas multinacionais, cuja organização pouco ou nada tem a ver com a organização corporativa medieval.
A industrialização começa com o sistema putting out, isto é, a deslocalização das actividades laborais para fora do âmbito territorial da acção das corporações, as cidades. Para mais tarde se reorganizarem sob a forma de fábricas. Deixaram de ser os empresários a ir ter com os trabalhadores com a sua matéria-prima para ser elaborada em produto e passaram a ser os trabalhadores a custear os transportes e as despesas de alojamento para terem acesso ao salário. Tal transição não se fez sem grande violência, evidentemente. Portanto, o estado que começou por apoiar o comércio com base na organização de recursos militares capazes de impor tal actividade além mar, tornou-se também utilizador da força para impor a proletarização das populações expulsas das suas anteriores formas de vida, a exploração da terra em nome da aristocracia cujo poder as submetiam.
Do lado da propaganda, com os Iluministas, ocorre a valorização do trabalho sob a forma da sua individualização (anti-corporativa, portanto) e da sua transparência (a revelação pública dos segredos dos mestres através da utilização da escrita e dos meios de publicação e divulgação entretanto criados). Esta valorização do trabalho presume o enfraquecimento das corporações – que só se darão por definitivamente vencidas na segunda guerra mundial, com a derrota dos integristas, fascistas e nazis – em favor das comunidades de trabalhadores individuais potencialmente iguais entre si (ainda hoje correspondentes à noção de senso comum sobre o que é uma sociedade, na Europa) e dos mercados de empresários individuais livres para tomarem as iniciativas que entenderem e lutarem por elas, protegidos da agressividade da luta económica por comunidades religiosas (ideia de sociedade vigente nas Américas).
A valorização individualizada do trabalho substituiu a desvalorização social do trabalho, que estava na base do recurso autorizado e recomendado à escravatura. Foi um processo histórico lento e não voluntário. Processo de que escaparam todos os que puderam, como os profissionais. Os profissionais era indivíduos mas não se confrontavam com um mercado agressivo. Ao invés, dada a natureza do seu trabalho, altamente elaborado culturalmente e imprescindível ao equilíbrio das pessoas envolvidas por dinâmicas de globalização que se lhes impuniam sem terem oportunidade de entender ou conhecer o que estava a acontecer, os profissionais eram raros e tratados com deferência necessitada tanto pelas classes altas como pelas classes baixas: apoio jurídico, médico,
de construção de infraestruturas, satisfazem necessidades básicas de relação com os estados violentos, com a doença, com a saúde.
As profissões são detentoras de competências altamente elaboradas e raras, porque cada pessoa ou família só precisa de as usar uma vez ou poucas vezes na vida. São competências estruturantes de sociedades cuja amplitude em espaço e tempo se transformou paulatinamente da autarcia para o cosmopolitismo.
As profissões imaginam-se intelectualmente superiores às sociedades, e ao serviço destas, independentemente das divisões de classe. São elas que promovem os valores da meritocracia para justificar a sua superioridade social relativamente aos outros trabalhadores. E se distinguem internamente como os de esquerda – activamente sensibilizados pelas misérias alheias –, os de direita – activamente empenhados em contribuir para a revolução social contra as aristocracias (direitos diferenciados segundo a condição social) e os agnósticos – motivados exclusivamente por sobreviver ou enriquecer como profissionais.
Há profissões que gozam de uma estabilidade suplementar, quando estão directamente protegidas pelos estados, como juízes, procuradores, militares, professores, pessoal de saúde, etc. Estabilidade, claro, atacada pelas políticas neoliberais actuais.
O período histórico que aparenta estar a chegar a um fim, neste final de segunda década do século XXI, a que Nancy Fraser chamou capitalismo financiarizado, caracteriza-se pela democratização das profissões e, ao mesmo tempo, a precarização do trabalho e a redução geral da massa salarial relativamente ao produto. Derrotado o corporativismo, o nacionalismo tem sido utilizado com sucesso na última década para responder à contradição entre a maior escolarização das populações, convencidas pelas ciências sociais que a escola é um ascensor social, o enquadramento simbólico de cada vez mais trabalhadores em profissões simbólicas, na medida em que a contratação colectiva e as negociações sindicais perdem influência, e a crescente precarização do trabalho mais individualizado, em condições de cooptação das oposições comunistas e trabalhistas pelos estados. A profissionalização da política, incluindo do sindicalismo, desqualificou as restantes profissionalizações, excepto as que servem os desígnios políticos de extensão da globalização ao novos patamares de diferenciação entre os trabalhadores locais e os profissionais globais, designados por Robert Reich (1991) por analistas simbólicos.